sábado, abril 27, 2013




Postal  da «CASA do BICO» Nº 10

 O parto na «labrega»

E lá voltou o tempo tristonho, de uma paz podre, belicoso, que mais do que incomoda, envelhece (nos).

Há que reagir à maldade dos deuses. E saltar fora do afecto modorroso dos lençóis quentinhos, e … «navegar».

A ria está quieta como um gato enrolado, esquecido de si e do que se passa à sua volta. No nosso tempo, meses que tinham R, eram meses de «cricalhada». Esta semana, apesar do dito R estar no mês, agora, as autoridades vieram decretar proibição do «crico», fora de casa. Parece que aquela alga que pinta de vermelho, adiantou o período de proibição. Por isso a ria está vazia, como mulher visitada pelo dito. E logo posta de lado pelos amantes. Raio desta cambada. Bem podiam afagá-la, acarinhá-la, e renderem-lhe visita. Ao menos de cortesia. Ingratos.
Mas hoje era dia de charla. E muito me admirei, quando ao meu encontro, além da Zefa e da Bernarda, vinha uma outra vistosa faininha. Logo apresentada como a Joana «Labrega».

-Olhe cá: para mudar de conversa, trouxemos a Joana «Labrega». Para ouvir uma história, linda. Mesmo linda, Vai ver. Aqui, a Joana, foi filha do arrais Agostinho «O Capa Cavalos». Home daqueles que dizia:
-Ah! mar estás a roncar (?)… espera que já  te mijo  em cima….
O Agostinho era casado com a Deolinda «Patacão». Ora às tantas esta emprenhou, e o certo é que passou muito mal, a rapariga.

E vai um dia a coisa complicou-se. Chamada a manobradeira do sítio, a ti Tuna «a Parideira»,  esta logo  percebeu que a criança estava atravessada na «vaga», aos baldões, e não havia maneira de a trazer cá para fora. Nem com «reboque». Chamando o Agostinho de parte, segredou-lhe:

-Temos aqui um estipor de lanço que ficou no peguilho. Senão levamos a Deolinda, a Aveiro,  e já, ao hospital, vossemecê fica sem rede e sem peixe.

- Mas como (?) …balbucia o arrais que nunca se vira num momento daqueles. Sem estrada, sem transporte, só lá para a noite dentro…se

-É tarde, interrompe a Tuna. Muito tarde. Temos uma, duas escassas horas. C’a Deolinda não óguenta mais. Vá pedir ao Ti Rigueira «o Murtoseiro», que ele leva a pobre, a Aveiro, na sua bateira «Labrega». Não há outro como ele, a voar sobre a ria, Ti Agostinho. Vá (!) meneie-se raio de homem, parece um xana, aí especado.

O Agostinho deu da perna e passado um pouco voltou com o Rigueira «Murtoseiro» que logo ordenou:

-Vá peguem na cachopa e levem-na ali à borda, que eu vou preparar o «camarote». A «Labrega» era uma daquelas bateiras que os murtoseiros traziam com eles, para os lanços do «saltadouro». Elegante na sua bica, toda «embreada», servia de «casa» ao pescador. Que lhe armava, no castelo de proa, o toldo espalmado (pata de rã) com que se protegia do vento frio da noite. O Rigueira aconchegou a manta, armou o toldo, e quando trouxeram a Deolinda, foi só poisá-la ao de mansinho na «Voadora». Assim se chamava a «Labrega». Toda pretinha, só com o raminho a enfeitar a cruz erguida na bica da sua elegante proa. A «Labrega» do Rigueira era a única que tinha uma vela bastarda, calcada à proa, na sarreta, e verga atirada bem lá para o alto.
                                            A «labrega» voadora
Vela enfunada, bem calcada no punho a esticar a testa da vela, escota na mão a comandar a «enchidela», toste bem ferrada, e a «Voadora», era, nas mãos do experimentado Rigueira, uma galgadora da ria.

O Agostinho sentado no «traste» olhava pela Deolinda deitada a seus pés. E os três embarcados atiraram-se à emposta. Punho da escota bem ferrado, cabo do xarolo de sota vento laçado na sarreta de barlavento, trilhado nos dedos de pé para jogar a orça, num ápice chegaram ao canalete do «Oudinot». Mas aqui a Deolinda, fosse pelas batidelas da bateira a adoçar a vaga, fosse pelo respingos da ria que entravam, bateira adentro, diz sentir que:
-Ai meu Deus e nossa Senhora do Bom Momento, «ela» já deu volta e vem aí……
O Rigueira acosta a «Labrega», fundeia numa revessa e pede ao Agostinho (que lívido, hirto, ficara, para ali ,especado).
-Vá, que a «rede está à borda» e é preciso separar o «mexoalho» do peixe branco. Salta lá para trás homem, estipor que só tens chaniço para o mar. De resto és um empecilho cheio de trízia.
E lavando as mãos nas auga, que aquecida pelo vento suão estava morna, abeirou-se da Deolinda e ordenou:
-Vá lá cachopa: ferra aqui as mãos nos escalamões, retesa-me esses pés no paral, e acospe-me  cá para fora o regordido que trazes aí dentro. E tu Agostinho (!): forra a macola com este camisote de linho, com que fui ao altar, e prepara-te para aparar o rebento. Passa-me aí a naifa de rasgar o porfio para cortar a mão da barca ao redame, e «a» libertar. 

E se melhor dito, melhor feito. Eis que de entre as pernas da Deolinda se escapa uma pimpolha a berrar como uma esgalmida. Logo o Rigueira mete o vertedouro na ria, e eslavaça a paxoneira (pois de facto era uma bonita pimpolha que acabara de nascer na «Labrega».
-Ora, diz a Zefa… e virando-se para a Joana que sorridente ouvira toda a história do enredo do seu nascimento, diz toda delambida: – agora veja, aqui tem o pimpolho nascido às mãos do parteiro Rigueira: – a Joana «Labrega».

Eu olhei para a Joana, embeiçado. Os seus olhos d’água eslavaçados pelas águas da ria, amêndoas doces a boiarem, inquietos, num rosto muito moreno, melaço,vivo e brilhante, eram sublinhados por um cabelo revolto. Negro…negro  como o embreado da «labrega» do Ti Agostinho.

                                          Na «labrega» do Rigueira
                                           Nasceu a Joana dos olhos d’água
                                           Foi na barca toda negra
                                           Que nasceu o meu amor;
                                           Estar longe sem a ver,
                                           Desdita a minha e minha mágoa.

 SF – Abril 2013                                          

2 comentários:

Maria Emília disse...

Que história maravilhosa e tão bem contada! Parabéns!

Ábio de Lápara disse...

Bela peça, João! Como sempre. Lembro-me que a minha mãe contava a história de alguém que tinha nascido na barca da Costa Nova. Devia acontecer com alguma frequência. Grande abraço

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